domingo, 20 de março de 2011

TEXTO COMPLEMENTAR – AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL (Antônio de Pádua Ribeiro)

O Estado, ao vedar, salvo em casos excepcionais, a autotutela dos direitos, chamou a si a tarefa de solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses, fazendo-o mediante o processo. Todavia, a doutrina processual, desenvolvida a partir de fins do século passado, teve basicamente uma concepção individualista dos litígios. Por isso, dentre outros princípios, o que confere legitimação para a causa aos titulares do direito subjetivo violado e limita os efeitos da coisa julgada às partes da demanda: (...) a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, diz o art. 472 do CPC.
Essa concepção individualista do processo restou superada, mostrando-se insuficiente para atender às exigências dos tempos modernos, de uma sociedade de massa cada vez mais consciente dos seus direitos, embora a grande maioria dos seus membros sinta-se, na prática, impossibilitada de exercitá-los pela dificuldade de acesso aos órgãos componentes do sistema judiciário. Daí o surgimento do fenômeno da litigiosidade contida ou, até mesmo, cada dia com mais freqüência, o uso do meio de solução de conflitos próprio das sociedades primitivas, a violência, fazendo-se justiça pelas próprias mãos.
É, pois, preciso repensar a Justiça. E, no desempenho dessa tarefa, é imperativo que se considerem não apenas, como até aqui tem acontecido, os operadores do sistema judiciário, mas, especialmente, os consumidores da Justiça. Não se pode olvidar que, no regime democrático, a atuação precípua do Estado, mediante os seus órgãos, há de visar sempre à afirmação da cidadania. De nada adianta conferirem-se direitos aos cidadãos, se não lhes são dados meios eficazes para a concretização desses direitos.
As idéias sobre a matéria vêm sendo desenvolvidas em países da Europa e da América, em torno do que se convencionou chamar “acesso à justiça”, sendo relevantes, a respeito, os sucessivos trabalhos publicados por Mauro Cappelletti e Vittorio Denti.
Em suma, o que pretende essa corrente de pensamento é, nas palavras de Cândido Rangel Dinamarco (...) a abertura da ordem processual aos menos favorecidos da fortuna e à defesa de direitos e interesses supra-individuais, com a racionalização do processo, que (...) quer ser um processo de resultados, não um processo de conceitos ou filigranas. O que se busca é a efetividade do processo, sendo indispensável, para isso, (...) pensar no processo como algo dotado de bem definidas destinações institucionais e que deve cumprir os seus objetivos sob pena de ser menos útil e tornar-se socialmente ilegítimo. Acesso à justiça é o acesso à ordem jurídica justa, no dizer de Kazuo Watanabe. Não tem acesso à justiça aquele que sequer consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas mazelas do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer ordem.
Em brilhantes conferências que proferiu sobre o tema, assinalou o Prof. Mauro Cappelletti ser muito fácil declarar os direitos sociais; o difícil é realizá-los. Daí que (...) o movimento para acesso à justiça é um movimento para a efetividade dos direitos sociais, e a sua investigação deve ser feita sob três aspectos principais, aos quais denominou ondas renovatórias: a primeira refere-se à garantia de adequada representação legal dos pobres. Como fazê-la? A designação honorífica de advogados não tem mais sentido. Deve-se permitir a escolha de profissionais, instituir órgãos de defensoria pública ou adotar sistema misto? Seja qual for a solução, é fundamental que se assegure aos necessitados assistência jurídica integral e gratuita.
A segunda onda renovatória visa à tutela dos interesses difusos ou coletivos, com o objetivo de proteger o consumidor ou o meio ambiente. Tem por pressuposto que o conceito de pobreza não se adstringe ao indivíduo carente de recursos financeiros, de cultura ou de posição social. É mais vasto: abrange grupos e categorias, como no caso do consumidor. Uma empresa produz milhões de produtos com um defeito de pouco valor. Trata-se de interesse fragmentado, pequeno demais para que o cidadão, individualmente, defenda o seu direito. Mas, se todos os consumidores, em conjunto, decidirem atuar, estarão em jogo interesses consubstanciados em valores consideráveis. Há, pois, de atentar-se para os carentes econômicos e os carentes organizacionais.
A terceira onda preocupa-se com fórmulas para simplificar os procedimentos, o Direito Processual e o Direito material, como, por exemplo, nas pequenas causas, a fim de que o seu custo não seja superior ao valor pretendido pelo autor. O tema envolve estudos, dentre outros, sobre o princípio da oralidade e da imediatidade, bem como sobre os poderes do juiz e a instrumentalidade do processo.
Em síntese, conforme o insigne jurista, os principais problemas do movimento reformador são os seguintes:
a) o obstáculo econômico, pelo qual muitas pessoas não estão em condições de ter acesso às cortes de justiça por causa de sua pobreza, onde seus direitos correm o risco de serem puramente aparentes;
b) o obstáculo organizador, por meio do qual certos direitos ou interesses “coletivos” ou “difusos” não são tutelados de maneira eficaz se não se operar uma radical transformação de regras e instituições tradicionais de Direito processual, transformações essas que possam ter uma coordenação, uma “organização” daqueles direitos ou interesses;
c) finalmente, o obstáculo propriamente processual, por meio do qual certos tipos tradicionais de procedimentos são inadequados aos seus deveres de tutela.
Cumpre salientar que a reforma da nossa Lei Adjetiva Civil tem sido feita com vistas a tornar realidade as novas regras atinentes ao que se denominou “acesso à justiça”.
No Brasil, essa grande revolução começou, no plano legislativo, com a edição da Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965) e assumiu dimensões revolucionárias com a promulgação da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985), estendida até mesmo à tutela da ordem econômica pela Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994 (art. 88), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990) e Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990).
A Lei da Ação Civil Pública, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor instituíram as bases da tutela do direito coletivo em nosso ordenamento jurídico. Esses diplomas legais atribuíram legitimidade ao Ministério Público e a outras entidades representativas de classe, estabeleceram regras sobre a coisa julgada erga omnes e ultra partes e dispuseram sobre a conceituação das três espécies de direitos e interesses a serem objeto de tutela coletiva: os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.
Tenha-se, por fim, em conta que a Constituição Federal em vigor, no plano da tutela constitucional das liberdades, criou os institutos do habeas-data, do mandado de injunção e do mandado de segurança coletivo, consagrando princípios relativos à tutela jurisdicional coletiva (legitimidade dos sindicatos e das entidades associativas em geral: art. 5º, inc. XXI, e art. 8º, inc. III) e dando feição constitucional aos juizados especiais de pequenas causas (art. 24, inc. X, e art. 98, inc. I) e à ação civil pública (art. 129, inc. III).

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